
Para que se chegue ao desejado, faremos uma prévia sobre a vida do autor de “O CHEIRO DO RALO”, Lourenço Mutarelli, e assim entender um pouco sobre o romance, e poder discorrer sobre o livro e filme.
Mutarelli nasceu em São Paulo no mês de abril de 1967, logo após o golpe militar no País. Cursou a Faculdade de Belas Artes, queria ser artista plástico, mas sua vontade mesmo era pintar palavras. Trabalhou três anos com Mauricio de Sousa como cenarista e neste período criou o personagem “cãozinho sem pernas”.
Nesta sua trajetória produziu histórias em quadrinhos, durante toda a década de 80, e ele mesmo fez as distribuições, uma vez que as editoras estranhavam seus temas e não queriam arriscar com os projetos.
Seus primeiros experimentos são OVER-12, e SOLÚVEL (1988-1989), com uma tiragem mínima de 500 exemplares, que hoje estão espalhados nas mãos de fieis leitores.
Em 2002, lançou “O CHEIRO DO RALO” seguido de “ JESUS KID” de 2004, “O TEATRO DAS SOMBRAS” de 2007,“A ARTE DE PRODUZIR EFEITO SEM CAUSA” de 2008, “MIGUEL E OS DEMÔNIOS” de 2008, “O NATIMORTO” de 2009 e “NADA ME FALTARÁ” de 2010.
Nas páginas que seguem, falaremos sobre o livro “O Cheiro do Ralo”, e sobre sua adaptação para o cinema.
O CHEIRO DO RALO: O LIVRO
Caro Lourenço,
Esse aqui é só pra te dizer que curti pra caramba
“O Cheiro do Ralo”.Li com muito gosto, envolvido até o osso.
O livro tem um pique de gibi, mesmo sem ter os desenhos.
É engraçado isso...
Engraçado também a gente ir simpatizando e mesmo
torcendo pelo narrador, mesmo ele sendo meio detestável.
(...) Obrigado por me deixar ler antes mesmo da publicação.
Desculpe a demora em dar retorno,
isso se deve à minha desorganização crônica.
Na verdade li já faz algum tempo,
mas só agora parei pra te dizer o quanto apreciei”.
Um grande abraço do
Arnaldo Antunes
O livro conta o dia-a-dia de um homem de classe média que passa seus dias negociando bugigangas em seu escritório de antiquidades.
O banheiro de seu escritório tem um problema com um ralo hidráulico, e todos que adentram o espaço, o personagem se sente na necessidade de explicar-lhes a causa do mau cheiro, o que nos dá a impressão de que ele tem um pudor, uma certa vaidade, ainda.
Este personagem, anti herói, que propositalmente não tem nome no livro, apenas se parece com o cara do comercial da Bom Bril. Ele está em conflitos consigo mesmo por não saber se há um passo à frente; sem ao menos perceber que não sabe saber. A ausência do nome não está somente no protagonista, mas em todos os personagens, talvez para que encontremos neles, um auto-retrato da nossa sociedade.
O personagem principal tem uma noiva que aguarda ansiosamente pelo casamento, pois, “os convites estão na gráfica”, não se conforma com a atitude do futuro marido que resolvera de repente cancelar o casamento.
O livro é narrado em primeira pessoa, porem o narrador cede sua voz para dar fala a outros personagens. O livro vai discorrendo de cena em cena, e cada personagem; dos mais variados tipos de personalidade, entram na sala do protagonista na intenção de vender suas bugigangas.
Cada um desses personagens adentra o escritório e se depara com um cara frio, sarcástico, irônico e que se satisfaz ao ver o próximo implorando por seu dinheiro e humilhando-se.
O protagonista sem nome vive entre sua casa, o trabalho e uma precária lanchonete, onde fica fascinado por uma Bunda, sim uma Bunda, com letra maiúscula por que não se trata simplesmente de uma bunda, e sim de uma bunda personalidade criada por ele, através da bunda. Para o protagonista não interessa a cara da personagem, só a bunda.
Tal Bunda é da inocente garçonete que vive lendo “Revistas dos Astros” e se desmancha melindrosamente ao ganhar balas de framboesa.
Apaixonado pela Bunda, o personagem começa freqüentar a lanchonete, e tudo que acontece de ruim ele coloca a culpa o ralo. O que ocorre é que a comida servida na lanchonete é péssima, e ele chega a se perguntar, “se eu comer esta porcaria, o ralo vai feder mais”, ainda sim, ele prefere que o ralo feda.
As pausas e mudanças de cenas no livro são dadas por espaços entre um diálogo e outro, como se fossem quadrinhos retirados de gibis. Os diálogos são sempre iniciados pelo protagonista, ele quem dá as cartas, dele é a voz principal, ele controla a narrativa e cada desenlaçar dela. Ele entra, ele sai.
Não é possível analisar o tempo que transcorre a história, de repente uma semana, ou alguns dias, o que se deve pensar é no tempo psicológico, em que o protagonista vive uma busca em criar uma identidade social que fora perdida sem a ciência do mesmo.
E com isso o protagonista sem nome embarca numa paranóia de que o ralo é um portal para o inferno. Se sente vigiado, mas percebe que faz parte desse ralo, desse inferno, e quando resolve fechar o ralo devido ao mau, tudo começa dar errado, e ele se vê na necessidade de reabrir o ralo para poder respirar, como se sua essência estivesse no ralo.
Nessa tentativa de criar uma identidade e de preencher uma ausência, ele resolve, a partir de um dos negociantes que lhe vende um olho de vidro, e um outro que lhe vende uma perna, que irá reconstruir seu pai ausente. Seu pai Frankenstein.
Um pai que perdera antes mesmo de o ter. E constrói em sua mente a imagem de um pai. A figura masculina representa a sociedade machista, as mulheres são apenas objetos. Coisas.
Uma monotonia e solidão se instala na vida do protagonista, que sozinho está, e sozinho é. Vaga vazio entre sua casa, seu trabalho e a lanchonete.
Num descuido, acaba dizendo à Bunda que pagaria para tê-la, o que a ofende, pois a Bunda parece estar apaixonada por ele e diz que se entregaria gratuitamente. Esse fato não agrada o protagonista, pois para ele a Bunda só terá o valor se ele pagar por ela. “Coisificando-a”, como tudo a que ele se apropria.
Ofendida ela foge, e só aparece quando, sem dinheiro e desempregada, aceita a oferta de se mostrar a ele por dinheiro. Então, ele a abraça a moça, a Bunda, e chora. Chora da condição em que está, da condição em que o ser humano vive, da humilhação, de ser tão pouco.
Destampa o ralo e respira. Se vê no escuro do ralo, e se lembra de uma tela de Caravaggio, em que Narciso olha um lago, mas este ralo não tem reflexo, só o breu que é o seu “eu”.
O brilhante autor faz interferências durante todo o livro e nos remete a outros escritores e compositores em um texto todo entrecortado por citações, o que faz do livro O Cheiro do Ralo um livro para ser lido com cuidado e atenção.
A maneira como o escritor nos dá a narrativa nos faz ler de forma rápida e intensa, mas ao mesmo tempo, exige de nós cuidado, para nada escapar à sensibilidade.
Com um texto rico em todos os sentidos, precisamos de um olho mágico ou uma lupa para não deixar passar nenhum detalhe.
Ela entra, ela treme, ela veio trazer a ele sua única verdade, ela atira, ele sangra, se esvai.
Tudo prenuncia um fim. A narrativa se fecha e numa passagem da metalinguagem para o metafísico, o autor lamenta ao leitor por não ter escrito o livro “O cheiro do ralo“.
“Não há luz.
Era tudo mentira.
Desse lado ninguém espera por mim.
Ninguém me guia.
Pois o caminho não dá pra errar.
Caio.
O Caminho é a queda.
A queda me traga como um ralo.
(...)
Eu não quero ir.
Mas o abismo me engole.
Eu queria ficar”.
Lourenço Mutarelli.
O Cheiro do Ralo.

O CHEIRO DO RALO: O FILME
Sob direção de Heitor Dhalia, roteiro de Marçal Aquino, e estrelado por Selton Mello, que ao ler o romance ( num vôo ) se interessou imediatamente por um dos papeis, ligando para Lourenço Mutarelli e lhe sugerindo a realização de um longa.
Diferente do livro, o filme traz o protagonista de “O CHEIRO DO RALO”, com características mais aprofundadas. Agora o anti-herói tem nome, nome este que homenageia o autor, Lourenço Mutarelli, e que também está num dos papeis, o segurança. Mas as diferenças terminam assim que começam.
Narrado em primeira pessoa, com recorte entre as cenas, a história se passa em algum lugar da cidade de São Paulo, e são ordenadas pelo narrador, que permite a entrada de cada personagem em cena.
Ele entra. Ele sai.
A fotografia externa e interna foi feita a partir do uso de uma lente amarelada, em que o diretor opta para dar ar de envelhecido, encardido, desbotado. Assim como num poema a sensação através do formato.
A cidade é revelada vazia, com resíduos de uma sociedade à beira do caos, paredes pichadas, mendigos na calçada. Do lado de dentro, a mesma câmera amarelada mostra em particular a vida do protagonista, Lourenço, comerciante de compra e venda que passa os dias se satisfazendo em explorar e humilhar seus clientes; quanto maior a necessidade, maior a humilhação que Lourenço os submete.
A luta travada entre o protagonista e entre o ralo do seu banheiro, tende a explicitar a sociedade que vivemos, vendendo a preços baixos o que não tem valor, a dignidade. E pagando por bundas, num país de bundas.
A sensação do poder do dinheiro o leva por caminhos estreitos, que vão se afunilando até chegar em si próprio, e questionar-se se tudo o que tem é realmente seu, e até que ponto o dinheiro pode comprar, pois a ausência do pai nesta hora urge e ele tenta reconstruir a figura materna. Para assim ter uma história, a sua história.
As personagens são tipos, e cada um que chega para negociar perde parte de si, pois até de suas falas, seus sotaques, gírias, expressões, Lourenço se apropria.
- A vida é dura!
Tal tipificação começa na ausência de nomes. “A Drogada”, “A Noiva”, “O Segurança” , “A Bunda”, são nomes que o leitor-expectador tem que atribuir aos personagens, uma vez que estes não têm, e quem tem nome, no caso a garçonete, é impronunciável.
Até sua empregada doméstica que trabalha há 8 anos, quando pronunciado seu nome, ela o corrige dizendo que seu nome não é este, e sim aquele.
“A Drogada” tem papel fundamental no desfecho da narrativa, e é quem na verdade, consegue de algum modo fazer o anti-herói olhar para si mesmo, e se encontrar.
Mas ele não queria, e se arrasta até o ralo, para tentar resgatar o que lhe foi tirado, o seu “eu”.
- “E então, ninguém entra, ninguém sai”.O longa participou de vários Festivais, levando os prêmios de melhor direção, melhor ator – Selton Mello, menção honrosa a todo elenco pela crítica, e muito bem elogiado pela crítica americana.
De certa forma, Mutarelli personifica em seus personagens, retratos da sociedade contemporânea: o trágico movido à decepções, fracassos e insegurança de um mundo ficcional todo desprovido de concepções ético-morais.
Por diversos ângulos de percepção da trama, e da mesma forma que o protagonista acaba por habituar-se e algumas vezes gostar do cheiro do ralo, o leitor também se habitua com seus modos mesquinhos, manipuladores e egoísta, e acaba por sentir o cheiro do ralo, e não pode dizer que não gosta. E você, gosta?
É um auto-retrato com essência da raça humana em questão.
Ficha técnica – O Cheiro do Ralo
Brasil, 2006 – 95 min
Diretor: Helio Dhalia
Roteiristas: Marçal Aquino e Heitor Dhalia
Produção Executiva: Matias Mariani, Marcelo Doria, Rodrigo Teixeira
Produção: Heitor Dhalia, Joana Mariani, Marcelo Doria, Matia Mariani, Rodrigo Teixeira.
Em associação com : Lula Franco, Patrick Siaretta, Selton Mello
Empresas Produtoras: Geração Conteúdo, Primo Filmes, Branca Filmes, Telelmage, Sentimental Filmes e Mundo Cane Filmes
Fotografia: José Roberto Eliezer, a.b.c.
Música: Apollo Nove
Elenco: Selton Mello, Paula Braun, Lourenço Mutarelli, Fabiana Gugli, Mario Schoemberger, Martha Meola, Flávio Bauraqui, Suzana Alves, entre outros.
Bibliografia - Lourenço Mutarelli
A Arte de Produzir Efeito Sem Causa (Companhia das Letras)
O Cheiro do Ralo (Devir Editora)
O Natimorto (DBA)
Jesus Kid (Devir Editora)
Miguel e os Demônios (Companhia das Letras)
Nada me Faltará (Companhia das Letras)
Quadrinhos:
A Caixa de Areia ou Eu era Dois em Meu Quintal
Transubstanciação
Sequelas
A Confluência da Forquilha
Mundo Pet
O Dobro de Cinco
O Rei do Ponto
A Soma de Tudo I
A Soma de Tudo II
Desgraçados
Over-12
Impublicáveis
Resignação
Solúvel
Esta resenha ( TIL ) foi solicitado pelo meu curso de Letras 3º Semestre - Unip Alphaville.
Sob Orientação Profª Janaína Arruda.
E grande ajuda da Leca, Alessandra Paulo. Quanta paciência, Anjo, obrigado!!! ( cheio de vírgulas ) rs.
Novembro - 2010.
Alexandre Pedro