Seja bem vindo!!!
-Entre,
-Tire os sapatos,
-Sente-se e fique à vontade.
-vou pôr uma música.
-Aceita um café?
- Gosta de livros?
- escolha um e vá folheando,
-volto já, com o café.
Alexandre Pedro
e-mail: alexandre.eells@gmail.com

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terça-feira, 26 de outubro de 2010

Leda e o Cisne


Um pouco de mitologia:

Conta a lenda que Leda era uma jovem princesa, recém casada com Tíndaro, herdeiro de Esparta. Leda vivia a natureza, gostava de sentir os raios de sol tocando sua pele, a grama verde sob seus pés, sob olhares indiscretos dos deuses.
Certo dia, Zeus a caminho de Tróia, encontra Leda seminua na relva, e de longe, fica admirando sua beleza. Temendo assustá-la e de ser repelido, uma vez que era casada, Zeus transforma-se num lindo e imenso cisne, com belas plumagens para cortejá-la.
Leda fica de longe observando o cisne se aproximar.
Então, o cisne começa mexer suas penas com desenvoltura, numa tentativa excitante em conquistar a moça. Seus movimentos a fascina, a envolve.
Leda estava seduzida.
Então o cisne se aproxima e começa a tocá-la, a acariciá-la com suas plumas e seu longo pescoço.
Excitada, Leda deitou-se novamente na relva e aguardou que o cisne se deitasse sobre ela, e então se amaram.
Meses depois, Leda percebe seu corpo diferente, e de seu ventre saem dois ovos. Leda tivera quatro filhos de Zeus.
Hera, mulher e irmã de Zeus, com ciúmes, começa perseguir Leda e a proíbe de viver no reino. Assim, Zeus compensa Leda, convertendo-a em deusa e reservando-lhe um espaço no céu, na forma de uma estrela na constelação de Cisne.
Os filhos de Leda e Zeus, Castor e Pólux, tornam-se grandes guerreiros e amigos inseparáveis. Porém Castor (que herdou a mortalidade humana) perde a vida em uma batalha e Pólux (que herdou a imortalidade divina) suplica a Zeus que devolva a vida do irmão. Comovido com esta demonstração de amor fraterno, Zeus propõe a Pólux dividir sua imortalidade, alternando com o irmão um dia de vida e um dia de morte.
Assim os irmãos passaram a viver e a morrer alternadamente e Zeus os homenageia com a constelação de Gêmeos, na qual não poderiam ser separados nem com a morte.

Pólux x Castor
Sol x Lua

Por, Alexandre Pedro.

* A imagem acima é reprodução da obra "Leda e o Cisne", de um dos grandes modernistas, Vicente do Rego Monteiro (1899-1970).

segunda-feira, 18 de outubro de 2010

Carlos Drummond de Andrade Vs Chico Buarque de Hollanda


Numa época em que o mundo se calava, pois, assim era preferível, eles optaram por gritar, silentes.

Carlos Drummond de Andrade, nascido em Minas Gerais - 1902 - é um dos maiores poetas brasileiros.
Chico Buarque de Hollanda, nascido no Rio de Janeiro - 1944 - é um dos maiores nomes da música popular brasileira, com sua extensa obra literária caminhando paralelamente à música.
Do livro "A Rosa do Povo", publicado em 1945, o poema "A Flor e a Náusea", assim como o livro, trata de uma época sufocante num período em que o mundo deglutia a Segunda Guerra Mundial; e no Brasil especificamente, a Ditadura de Getúlio Vargas.
Drummond foi capaz de captar todo sentimento, dor e agonia desta época, e mais importante, conseguiu transformar tudo isso em poesia.
Drummond começou escrevendo muito cedo, foi funcionário público e escreveu até a data de seu falecimento, ocorrida aos 85 anos de idade.

E minha proposta é que você, caro amigo, compare este poema com a obra de Chico Buarque, "Rosa dos Ventos".
No primeiro poema ( de Carlos Drummond ), A Rosa é a representação de um mundo novo, em que o poeta acredita e que está por surgir. No segundo poema ( de Chico Buarque ), a Rosa representa a sociedade que já pode olhar para este novo mundo idealizado. Este Mundo chegou, e é a própria sociedade quem desperta, ainda que tarde, para o despertar de um novo tempo, e a esperança que já havia sido perdida, renasce com força no coração do cidadão oprimido.
Seria injusto colocar dois poemas do Drummond, contra um do Chico, mas a idéia não é de oposição, e sim de complementação; portanto no final desta postagem, colocarei um segundo poema de Carlos Drummond de Andrade, em que os dois poemas já citados ( Chico Vs Drummond ), dialogam perfeitamente. Me refiro ao poema " Áporo ".


A Flor e a Náusea
Autor: Carlos Drummond de Andrade

Preso à minha classe e a algumas roupas,
vou de branco pela rua cinzenta.
Melancolias, mercadorias espreitam-me.
Devo seguir até o enjôo?
Posso, sem armas, revoltar-me?

Olhos sujos no relógio:
não, o tempo não chegou de completa justiça.
O tempo ainda é de fezes, maus poemas, alucinações e espera.
O tempo pobre, o poeta pobre
fundem-se no mesmo impasse.

Em vão me tento explicar, os muros são surdos.
Sob a pele das palavras há cifras e códigos.
O sol consola os doentes e não os renova.
As coisas. Que tristes são as coisas, consideradas sem ênfase.

Vomitar esse tédio sobre a cidade.
Quarenta anos e nenhum problema
resolvido, sequer colocado.
Nenhuma conta escrita nem recebida.
Todos os homens voltam para casa.
Estão menos livres, mas levam jornais
e soletram o mundo sabendo que o perdem.

Crimes da terra, como perdoá-los?
Tomei parte em muitos, outros escondi.
Alguns ache belos, foram publicados.
Crimes suaves, que ajudam a viver.
Ração diária do erro, distribuída em casa.
Os ferozes padeiros do mal.
Os ferozes leiteiros do mal.

Por fogo em tudo, inclusive em mim.
Ao menino de 1918 chamavam anarquista.
Porém meu ódio é o melhor de mim.
Com ele me salvo
e dou a poucos uma esperança mínima.

Uma flor nasceu na rua!
Passem de longe, bondes, ônibus, rio de aço do tráfego.
Uma flor ainda desbotada
ilude a polícia, rompe o asfalto.
Façam completo silêncio, paralisem os negócios,
garanto que uma flor nasceu.

Sua cor não se percebe.
Suas pétalas não se abrem.
Seu nome não está nos livros.
É feia. Mas é realmente uma flor.

Sento no chão da capital do país às cinco horas da tarde
e lentamente passo a mão nessa forma insegura.
Do lado das montanhas, nuvens maciças avolumam-se.
Pequenos pontos brancos movem-se no mar, galinhas em pânico.
É feia. Mas é uma flor. Furou o asfalto, o tédio, o nojo e o ódio.

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Rosa dos Ventos
Autor: Chico Buarque


E do amor gritou-se o escândalo
Do medo criou-se o trágico
No rosto pintou-se o pálido
E não rolou uma lágrima
Nem uma lástima para socorrer
E na gente deu o hábito
De caminhar pelas trevas
De murmurar entre as pregas
De tirar leite das pedras
De ver o tempo correr
Mas sob o sono dos séculos
Amanheceu o espetáculo
Como uma chuva de pétalas
Como se o céu vendo as penas
Morresse de pena
E chovesse o perdão
E a prudência dos sábios
Nem ousou conter nos lábios
O sorriso e a paixão
Pois transbordando de flores
A calma dos lagos zangou-se
A rosa-dos-ventos danou-se
O leito do rio fartou-se
E inundou de água doce
A amargura do mar
Numa enchente amazônica
Numa explosão atlântica
E a multidão vendo em pânico
E a multidão vendo atônita
Ainda que tarde
O seu despertar

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ÁPORO ( Publicado em A Rosa do Povo )
Autor: Carlos Drummond de Andrade

Um inseto cava
cava sem alarme
perfurando a terra
sem achar escape.
Que fazer, exausto,
em país bloqueado,
enlace de noite
raiz e minério?
Eis que o labirinto
(oh razão, mistério)
presto se desata:
em verde, sozinha,
antieuclidiana,
uma orquídea forma-se.

Neste último poema, Drummond discursa sobre um inseto ( o áporo ) que vai cavando sem achar saída, vai perfurando o poema até a sua transformação numa orquídea, que perfura o asfalto. O que é uma tradução de uma sociedade que depois de tanta luta, tanto sofrimento, desabrocha pra um novo mundo de esperanças.
Há ainda uma visão política no trecho:

Eis que o labirinto
( oh razão, mistério )
Presto se desata:
Possível alegoria a Luis Carlos Prestes, que acabara de ser libertado pelo Regime Militar. Pode ser interpretado como o Áporo buscando caminho na pátria sem saída, que se tornou o Brasil durante a Ditadura de Vargas.

Espero que não tenha sido cansativo pra você, leitor. Pois pra mim foi um imenso prazer, fazer esta comparação.
Abraço,
Alexandre Pedro

sexta-feira, 15 de outubro de 2010

Salmo Perdido - Dante Milano


Creio num deus moderno,
Um deus sem piedade,
Um deus moderno, deus de guerra e não de paz.


Deus dos que matam, não dos que morrem,
Dos vitoriosos, não dos vencidos.
Deus da glória profana e dos falsos profetas.


O mundo não é mais a paisagem antiga,
A paisagem sagrada.


Cidades vertiginosas, edifícios a pique,
Torres, pontes, mastros, luzes, fios, apitos, sinais.
Sonhamos tanto que o mundo não nos reconhece mais,
As aves, os montes, as nuvens não nos reconhecem mais,
Deus não nos reconhece mais.

sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Cecília Meireles - Retrato - Motivo



Retrato

Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.

Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.

Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?

Breve sobre o poema Retrato:
No Poema Retrato, Cecília nos faz refletir não sobre a idade que se chega e sim a que se perde. O eu-lírico no poema não percebe a vida passando por entre seus dedos, e quando pára pra se auto-analisar, percebe a vida de algo já consumado. Ainda assim, a personagem não sente pela velhice, repare:

"Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro"
.
Percebe-se nesta passagem que a personagem embora se dê conta da velhice, esta não a incomoda, ela permanece calma, diante da revelação do espelho/retrato.

"eu não tinha este coração
que nem se mostra".

Indiferença do eu-lírico em relação à idade.

E é tudo tão novo, e mágico que a personagem se pergunta:
"- Em que espelho ficou perdida a minha face?"

Por Alexandre Pedro


Deixo outro poema, "Motivo - Cecília Meireles ", pra que seja refletido e discutido, que tal?

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Motivo

Eu canto porque o instante existe
e a minha vida está completa.
Não sou alegre nem sou triste:
sou poeta.

Irmão das coisas fugidias,
não sinto gozo nem tormento.
Atravesso noites e dias
no vento.

Se desmorono ou se edifico,
se permaneço ou me desfaço,
- não sei, não sei. Não sei se fico
ou passo.

Sei que canto. E a canção é tudo.
Tem sangue eterno a asa ritmada.
E um dia sei que estarei mudo:
- mais nada.

Autor: Cecília Meireles

Júlio Cortázar - Continuidade dos Parques


Júlio Cortazar, um escritor Argentino, formado em letras em 1935, lecionou na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional de Cuyo", mas renunciou ao cargo, quando Juan Domingo Péron assumiu a Presidência.
O escritor anti-ditadura, muda se para París e passa trabalhar como tradutor da Unsesco.

Júlio, foi convidado a traduzir a obra completa de Edgar Allan Poe, pela Universidade de Porto Rico, trabalho este considerado pela crítica, como a melhor tradução da obra do escritor.

Júlio escrevia de forma a exigir do leitor uma participação ativa na leitura/narrativa.

Após a morte de sua segunda esposa, Carol, em 1982,Júlio entra em profunda depressão e morre aos 70 anos, de leucemia. Seu corpo é enterrado junto ao de Carol, em París.

Júlio Cortázar ( 1914 - 1984 )


Continuidade dos Parques


Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns arrendamentos, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado com uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde, e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava, e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da colina.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse, sem dó nem piedade, interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Do caminho oposto, ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um longo corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.
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Neste conto Júlio começa narrando a perspectiva de um personagem (O Leitor) que narra a história de um romance infiel, em que o casal traça um plano para assassinar o marido, e eis que o personagem "amante", percorre o caminho descrito pela mulher "amante/esposa", e se depara com a cena inicial, onde o personagem que lê e narra a história ao leitor, é o próprio marido. E que está sentado na poltrona verde aveludada, lendo o romance à nós-leitores. Ou seja, o personagem se torna real; sai de dentro do livro para assasinar o Leitor-marido.
Por Alexandre Pedro.

Hão de chorar os cinamomos - Alphonsus de Guimarãens


Hão de chorar por ela os cinamomos,
Murchando as flores ao tombar do dia.
Dos laranjais hão de cair os pomos,
Lembrando-se daquela que os colhia.

As estrelas dirão — "Ai! nada somos,
Pois ela se morreu silente e fria.. . "
E pondo os olhos nela como pomos,
Hão de chorar a irmã que lhes sorria.

A lua, que lhe foi mãe carinhosa,
Que a viu nascer e amar, há de envolvê-la
Entre lírios e pétalas de rosa.

Os meus sonhos de amor serão defuntos...
E os arcanjos dirão no azul ao vê-la,
Pensando em mim: — "Por que não vieram juntos?"

Alphonsus de Guimarãens, poeta simbolista, nascido em Minas Gerais em 1870, seus poemas privilegiam temas como o amor, morte, e a religião.
Aos 18 anos, perde sua noiva, Constança. Seus poemas, ou grande parte deles são dedicados à ela e a esse amor interrompido.

domingo, 3 de outubro de 2010

Cem anos de perdão - Clarice Lispector



Quem nunca roubou não vai me entender. E quem nunca roubou rosas, então é que jamais poderá me entender. Eu, em pequena, roubava rosas.
Havia em Recife inúmeras ruas, as ruas dos ricos, ladeadas por palacetes que ficavam no centro de grandes jardins. Eu e uma amiguinha brincávamos muito de decidir a quem pertenciam os palacetes. “Aquele branco é meu.” “Não, eu já disse que os brancos são meus.” Parávamos às vezes longo tempo, a cara imprensada nas grades, olhando.
Começou assim. Numa dessas brincadeiras de “essa casa é minha”, paramos diante de uma que parecia um pequeno castelo. No fundo via-se o imenso pomar. E, à frente, em canteiros bem ajardinados, estavam plantadas as flores.
Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era. E então aconteceu: do fundo de meu coração, eu queria aquela rosa para mim. Eu queria, ah como eu queria. E não havia jeito de obtê-la. Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques. Não havia jardineiro à vista, ninguém. E as janelas, por causa do sol, estavam de venezianas fechadas. Era uma rua onde não passavam bondes e raro era o carro que aparecia. No meio do meu silêncio e do silêncio da rosa, havia o meu desejo de possuí-la como coisa só minha. Eu queria poder pegar nela. Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume.
Então não pude mais. O plano se formou em mim instantaneamente, cheio de paixão. Mas, como boa realizadora que eu era, raciocinei friamente com minha amiguinha, explicando-lhe qual seria o seu papel: vigiar as janelas da casa ou a aproximação ainda possível do jardineiro, vigiar os transeuntes raros na rua. Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido. Entreabri somente o bastante para que meu esguio corpo de menina pudesse passar. E, pé ante pé, mas veloz, andava pelos pedregulhos que rodeavam os canteiros. Até chegar à rosa foi um século de coração batendo.
Eis-me afinal diante dela. Para um instante, perigosamente, porque de perto ela é ainda mais linda. Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos.
E, de repente – ei-la toda na minha mão. A corrida de volta ao portão tinha também de ser sem barulho. Pelo portão que deixara entreaberto, passei segurando a rosa. E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos literalmente para longe da casa.
O que é que fazia eu com a rosa? Fazia isso: ela era minha.
Levei-a para casa, coloquei-a num copo d’água, onde ficou soberana, de pétalas grossas e aveludadas, com vários entretons de rosa-chá. No centro dela a cor se concentrava mais e seu coração quase parecia vermelho.
Foi tão bom.
Foi tão bom que simplesmente passei a roubar rosas. O processo era sempre o mesmo: a menina vigiando, eu entrando, eu quebrando o talo e fugindo com a rosa na mão. Sempre com o coração batendo e sempre com aquela glória que ninguém me tirava.
Também roubava pitangas. Havia uma igreja presbiteriana perto de casa, rodeada por uma sebe verde, alta e tão densa que impossibilitava a visão da igreja. Nunca cheguei a vê-la, além de uma ponta de telhado. A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados. Colhia várias que ia comendo ali mesmo, umas até verdes demais, que eu jogava fora.
Nunca ninguém soube. Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.

Clarice Lispector

Por Alexandre:
Neste maravilhoso texto, Clarice trabalha com o uso de metáforas, e por entre linhas descreve a descoberta da sexualidade entre duas meninas.
O texto nos passa a impressão de tensão a algo proibido, de suspense.
As escondidas, e num papel de cumplicidades, ela resolvem roubar a rosa (metáfora - do orgão sexual feminino).

"Bem, mas isolada no seu canteiro estava uma rosa apenas entreaberta cor-de-rosa-vivo. Fiquei feito boba, olhando com admiração aquela rosa altaneira que nem mulher feita ainda não era."


"Se o jardineiro estivesse por ali, pediria a rosa, mesmo sabendo que ele nos expulsaria como se expulsam moleques."



"Queria cheirá-la até sentir a vista escura de tanta tonteira de perfume."


Enquanto uma vigia o jardim, pra ver se alguém vem vindo, a outra aproveita pra realizar seu desejo:

"Enquanto isso, entreabri lentamente o portão de grades um pouco enferrujadas, contando já com o leve rangido"
.

"Finalmente começo a lhe quebrar o talo, arranhando-me com os espinhos, e chupando o sangue dos dedos".

"E então nós duas pálidas, eu e a rosa, corremos
literalmente para longe da casa"
.

"A sebe era de pitangueira. Mas pitangas são frutas que se escondem: eu não via nenhuma. Então, olhando antes para os lados para ver se ninguém vinha, eu metia a mão por entre as grades, mergulhava-a dentro da sebe e começava a apalpar até meus dedos sentirem o úmido da frutinha. Muitas vezes na minha pressa, eu esmagava uma pitanga madura demais com os dedos que ficavam como ensangüentados".
Neste trecho a personagem leva a outra personagem a um êxtase de prazer, onde ela libera um líquido ainda que imperceptível, e molha seus dedos.

"Não me arrependo: ladrão de rosas e de pitangas tem 100 anos de perdão. As pitangas, por exemplo, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens".

Neste outro trecho, a personagem se justifica, como quem não sente culpa. Mas pra que justificar-se se não há culpa?
Ladrão que rouba ladrão, tem cem anos de perdão: Mulher x Mulher.
Rosas e pitangas, são elas mesmas que pedem para ser colhidas, em vez de amadurecer e morrer no galho, virgens.

Álvares de Azevedo - Meu sonho


Aparelho anti-masturbação masculina, Inglaterra, 1871-1930, Science Museum/Science & Society Picture Library

o poema abaixo " Meu sonho " de Álvares de Azevedo fala por entre linhas sobre masturbação masculina, preste atenção no ritmo que o poema te induz a ler, que é o movimento de "cavalgada".
A espada sanguenta na mão....( o orgão genital masculino )

"Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?."
Este parágrafo é o ato consumado, o orgão desfalecido que cai pro lado, morto.

O autor termina o poema expondo todo sentimento de culpa e pecado, algo que sempre temos depois de ter chegado ao orgasmo.

O Fantasma
Sou o sonho da tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!

Espero que gostem, e adoraria poder discutir mais sobre o poema, aceitam?



Meu Sonho

Eu
Cavaleiro das armas escuras,
Onde vais pelas trevas impuras
Com a espada sangüenta na mão?
Por que brilham teus olhos ardentes
E gemidos nos lábios frementes
Vertem fogo do teu coração?

Cavaleiro, quem és? o remorso?
Do corcel te debruças no dorso.
E galopas do vale através.
Oh! da estrada acordando as poeiras
Não escutas gritar as caveiras
E morder-te o fantasma nos pés?

Onde vais pelas trevas impuras,
Cavaleiro das armas escuras,
Macilento qual morto na tumba?.
Tu escutas. Na longa montanha
Um tropel teu galope acompanha?
E um clamor de vingança retumba?

Cavaleiro, quem és? - que mistério,
Quem te força da morte no império
Pela noite assombrada a vagar?

O Fantasma
Sou o sonho da tua esperança,
Tua febre que nunca descansa,
O delírio que te há de matar!.

Álvares de Azevedo

Carlos Drummond de Andrade



Sugar e ser sugado pelo amor

Sugar e ser sugado pelo amor
no mesmo instante boca milvalente
o corpo dois em um o gozo pleno
que não pertence a mim nem te pertence
um gozo de fusão difusa transfusão
o lamber o chupar e ser chupado
no mesmo espasmo
é tudo boca boca boca boca
sessenta e nove vezes boquilíngua.

Hilda Hilst


Cantares do Sem-Nome e de Partidas.

Que este amor não me cegue nem me siga.
E de mim mesma nunca se aperceba.
Que me exclua do estar sendo perseguida
E do tormento
De só por ele me saber estar sendo.
Que o olhar não se perca nas tulipas
Pois formas tão perfeitas de beleza
Vêm do fulgor das trevas.
E o meu Senhor habita o rutilante escuro
De um suposto de heras em alto muro.
Que este amor só me faça descontente
E farta de fadigas. E de fragilidades tantas
Eu me faça pequena. E diminuta e tenra
Como só soem ser aranhas e formigas.
Que este amor só me veja de partida.

Por Hilda Hilst

Foto: Fashion Design Rodrigo Nogueira
-Grande amigo, obrigado pela autorização de uso desta foto.
http://nogueirarodrigo.blogspot.com/

Fernando Pessoa


Fernando Pessoa

“Há em tudo o que fazemos uma razão singular
É que não é o que queremos
Faz-se porque nós vivemos
E viver é não pensar

Se alguém pensasse na vida, morria de pensamento
Por isso a vida vivida
É essa coisa esquecida
Entre um momento e um momento

Mas nada importa que o seja ou até que deixe de o ser
Mal é que a moral nos reja
Bom é que ninguém nos veja
Entre isso fica viver”

Fernando Pessoa

Safo - À uma mulher amada



Ditosa que ao teu lado só por ti suspiro!
Quem goza o prazer de te escutar,
quem vê, às vezes, teu doce sorriso.
Nem os deuses felizes o podem igualar.

Sinto um fogo sutil correr de veia em veia
por minha carne, ó suave bem-querida,
e no transporte doce que a minha alma enleia
eu sinto asperamente a voz emudecida.

Uma nuvem confusa me enevoa o olhar.
Não ouço mais. Eu caio num langor supremo;
E pálida e perdida e febril e sem ar,
um frêmito me abala... eu quase morro ... eu tremo.

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Safo, a maior poetisa lírica da Antigüidade é, provavelmente, também a primeira mulher a fazer poesia importante na história da cultura ocidental. Nasceu na ilha grega de Lesbos, por volta do ano de 612 a.C.
Sua poesia, devido ao conteúdo erótico, sofreu censura na Idade Média por parte dos monges copistas, e o que restou de sua obra foram escassos fragmentos.
Após cinco anos exilada, volta para Lesbos, onde logo se torna a líder da sociedade local, no plano intelectual. Sedutora, não dotada da beleza na concepção grega da época (embora Sócrates a houvesse denominado "A Bela"), Safo era baixa e magra, olhos e cabelos negros, e de refinada elegância, viúva e vivendo numa sociedade não tinha regras morais como hoje se concebem.
Safo foi chamada de "cortesã" (prostituta). E contavam que havia se suicidado pulando de um precipício na ilha de Leucas, apaixonada pelo marinheiro Faonte - fato que é descrito também em Menandro, Estrabão e Ovídio. Mas há consenso de que isto seja verdadeiramente mítico. Escritos sobreviventes dão Safo como tendo atingindo a velhice, e o certo é que não se sabe como nem quando ela morreu, sendo considerada por alguns a maior de todas as poetisas.
Sua poesia normalmente é direcionado ao feminino.

Lésbicas

O termo lésbica originalmente referia-se
somente às habitantes da ilha de Lesbos, na Grécia.
Na antigüidade, entre os séculos VI e VII a.C.,
morava naquela ilha a poetisa Safo,
admirada por seus poemas sobre amor e beleza,
em sua maioria dirigidos às mulheres.
Por esta razão, o relacionamento sexual entre mulheres
passou a ser conhecido como lesbianismo ou safismo.

Ismael Nery - Poema para Ela



Poema para Ela

Acabaram-se os tempos.
Morreram as árvores e os homens,
Destruíram-se as casas,
Submergiram-se as montanhas.
Depois o mar desapareceu.
O mundo transformou-se numa enorme planície
Onde só existe areia e uma tristeza infinita.
Um anjo sobrevoa os destroços da terra,
Olhando a cólera de um Deus ofendido.
E encontrou nossos dois corpos fortemente enlaçados
Que a raiva do Senhor não quis destruir
Para a eterna lembrança do maior amor.

Ismael Nery
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Ismael Nery foi um pintor brasileiro de influência surrealista, expressionista e cubista; seus temas remetem à figura humana.

Em 1922 casa-se com a poetisa Adalgisa Nery.

Um dos precursores do Modernismo, porém suas obras só tornam públicas em 1965 quando seu nome foi inscrito na 8º Bienal de São Paulo.

Depois de ter sido internado e aparentemente curado da tuberculose, a doença retorna e agora de forma irreversível; a partir daí o artista começa expressar sua dor, suas figuras se mostram mutiladas, viscerais
Faleceu aos 34 anos com tuberculose, mas nos deixou um extenso acervo de artes

Machado de Assís - Círculo Vicioso


Círculo Vicioso

Bailando no ar, gemia inquieto vaga-lume:
- Quem me dera que fosse aquela loura estrela,
que arde no eterno azul, como uma eterna vela !
Mas a estrela, fitando a lua, com ciúme:

- Pudesse eu copiar o transparente lume,
que, da grega coluna á gótica janela,
contemplou, suspirosa, a fronte amada e bela !
Mas a lua, fitando o sol, com azedume:

- Misera ! tivesse eu aquela enorme, aquela
claridade imortal, que toda a luz resume !
Mas o sol, inclinando a rutila capela:

- Pesa-me esta brilhante aureola de nume...
Enfara-me esta azul e desmedida umbela...
Porque não nasci eu um simples vaga-lume?

Machado de Assís.

* A imagem acima, é uma obra do artista plástico, Leonilson ( 1957 - 1993 )

Livro: Felicidade Clandestina - Clarice Lispector



Jujú, conforme você solicitou, estou postando o livro da Clarice Lispector - Felicidade Clandestina, que contém o poema Cem Anos de Perdão.

Beijo, e valeu pela visita,
BOA LEITURA!

aos demais visitantes e amigos:
Àqueles que por ventura gostarem de um bom livro, este é um excelente; confira!!!
http://www.4shared.com/document/BaNSnsFF/Livro_Felicidade_Clandestina_C.html

Augusto dos Anjos - Versos Intimos



Versos Íntimos

Augusto dos Anjos


Vês! Ninguém assistiu ao formidável
Enterro de tua última quimera.
Somente a Ingratidão - esta pantera -
Foi tua companheira inseparável!

Acostuma-te à lama que te espera!
O Homem, que, nesta terra miserável,
Mora, entre feras, sente inevitável
Necessidade de também ser fera.

Toma um fósforo. Acende teu cigarro!
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
A mão que afaga é a mesma que apedreja.

Se a alguém causa inda pena a tua chaga,
Apedreja essa mão vil que te afaga,
Escarra nessa boca que te beija!

Augusto dos Anjos, nascido em Parnaíba, 1884.
O poema acima foi incluído no livro "Os Cem Melhores Poemas Brasileiros do Século", organizado por Ítalo Moriconi para a Editora Objetiva - Rio de Janeiro, 2001

* A imagem acima,( O casal )é obra do artista que introduziu o surrealismo
no Brasil, Ismael Nery ( 1900 - 1934 ).
Pintor de imaginação surrealista e livre, Ismael Nery registrou em suas figuras fluídas uma intensidade dramática que foi marca inconfundível. Os rostos entrelaçados, com elementos unificados – neste caso, um dos olhos – remetem ao Cubismo, movimento que, entre outras propostas, procurou “deter” o tempo, fragmentando e reorganizando plasticamente a figura. Nery era um apaixonado – em amplo sentido – e daí, talvez, essa junção material e idealizada do casal, como se fosse possível unir de tal forma os amantes a ponto de transformá-los "em um só corpo". De outro lado, as cores escuras, podem traduzir as ameaças e perigos dessa aventura, quase sempre difícil ou impossível de ser consumada.

Ismael Nery - Eu



Ismael Nery

Eu
(1933)

Eu sou a tangência de duas formas opostas e justapostas
Eu sou o que não existe entre o que existe.
Eu sou tudo sem ser coisa alguma.
Eu sou o amor entre os esposos.
Eu sou o marido e a mulher.
Eu sou a unidade infinita.
Eu sou um deus com princípio.
Eu sou poeta!
Eu tenho raiva de ter nascido eu.
Mas eu só gosto de mim e de quem gosta de mim.
O mundo sem mim acabaria inútil.
Eu sou o sucessor do poeta Jesus Cristo
Encarregado dos sentidos do universo.
Eu sou o poeta Ismael Nery
Que às vezes não gosta de si.
Eu sou o profeta anônimo.
Eu sou os olhos dos cegos
Eu sou o ouvido dos surdos.
Eu sou a língua dos mudos.
Eu sou o profeta desconhecido, cego, surdo e mudo
Quase como todo mundo.

Tela e poema de ISMAEL NERY

Cartas de um sedutor - Hilda Hilst


HILDA HILST

Trecho de

Cartas de um sedutor

de Hilda Hilst

Estou doente. Taco, meu médico e amigo prescreveu champanhe gelado. Brut. E gelo nas têmporas. E sabes por que estou doente? Porque pressinto surpresas, notícias inquietantes, vindas não sei de onde, talvez de ti. (E por outra coisa que já te digo.) Sinto também que não devemos continuar com as cartas. Te vejo dissimulada, escondendo algo muito sério. Por que não permites que eu vá até sua casa? O que guardas aí? De alguma maneira me transformaste num escriba ou melhor num escrevinhador, e só de saber que tu me pensas escritor agiganta-me a náusea. Que tipos petulantes! Que nojosos! Esgruvinham as virilhas, o pregueado, escarafuncham os sórdidos corações, as alminhas magras, e daí enchem-se de arrotos quando terminam os textos. Verdade que adoro os livros, mas se pudesse arrancar de mim a visão dos estufados que os escreveram vomitaria menos o mundo e a própria vida. Tínhamos um amigo, o Stamatius (!) (eu só o chamava de Tiu, porque, convenhamos, Stamatius não dá) que perdeu tudo, casa e outros bens, porque tinha mania de ser escritor. Dizem que agora vive catando tudo quanto há, é catador de lixo, percebes? Vive num cubículo sórdido com uma tal de Eulália que deve ter nascido no esgoto. Muitos o procuram para ajudá-lo. Não quer nem saber. O Tiu quer escrever, só pensa nisso, pirou, sai correndo de pânico quando vê alguém que o conheceu. Carrega no peito uma medalha de Santa Apolônia, protetora dos dentes. Ah, não tem mais dentes. Bonito o Stamatius. Elegante, esguio. A última coisa que fez antes de sumir por aí foi torcer as bolotas de um editor, fazê-lo ajoelhar-se até o cara gritar: edito sim! edito o seu livro! com capa dura e papel bíblia! Só então largou as bolotas e balbuciou feroz: vai editar sim, mas a biografia da tua mãe, aquela findinga, aquela léia, aquela moruxaba, aquela rabaceira escrachada que fodeu com o jumento do teu pai - e quebrou-lhe os dentes com a muqueta mais acertada que já vi. Quebrou a mão também. Bem, mas isso não vem ao caso. Ao caso pior: o Kraus morreu. A Cuzinho num acesso de indignação não só a cause do apelido mas desesperada com todas as indignidades vindas do Tom, invadiu a casa do Kraus com o linguão de fora, e alguns dizem que o perseguiu pela casa inteira uma boa meia hora, escobilhando a comprida. Consta que o Kraus tapava o aro morrendo de rir literalmente. E acreditas? Morreu. O Tom quer provar homicídio, quer o testemunho de todos os amigos e dos terapeutas também, mas quem é que vai acreditar que um cara morreu de rir só com a ameaça de lhe lamberem o botão? A turma do pólo está estudando um plano, alguma nefanda crueldade para Amanda. Dizem que vão lhe enfiar algumas bolas de pólo polpas e pombinha adentro. Se assim for resolvido manda-me os tocos dos tais ficheiros. Haja bola! Tom foi medicado na hora do enterro de Kraus porque não suportou ver o amigo morto e ainda sorrindo. Estou doente por tudo isso e porque não posso pensar na morte, nem na minha nem na do Kraus nem da barata, tenho medo da pestilenta senhora e imagino-me puxando-lhe o grelo, esticando-lhe os pentelhos até ouvir sons tensos arrepiantes. Hoje gritei demente: vem, Madama, vem, e irado, numa arrancada, soltei da pestilenta grelo e pentelhos e eles esbateram-se frenéticos nos seus baixos meios. Se pudesse seduzir a morte, lamber-lhe as axilas, os pêlos pretos, babar no seu umbigo, enturpir-lhe as narinas de hálitos melosos, e dizer-lhe: sou eu, gança, sou eu, mariposa, sou Karl, esse que há de te chupar eternamente a borboleta se tu lhe permitires longa vida na olorosa quirica do planeta.

Ciao, irmanita.

(Cartas de um sedutor - SP: Paulicéia, 1991.)

Mário de Sá Carneiro - A Confissão de Lúcio



Mário de Sá Carneiro

Dispersão, Mário de Sá Carneiro.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas Pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me na alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em urna bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço,...
..................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba.

Leitura recomendada: "A Confissão de Lúcio".

Breve Resenha sobre a obra " confissão de Lúcio "
Narrado em primeira pessoa, a história de Lúcio é a história de um crime e de uma confissão. Depois de dez anos de prisão, onde cumprira pena por ter assassinado o poeta Ricardo Loureiro, Lúcio é solto e começa a contar sua história para, segundo ele, demonstrar sua inocência. À medida que relata os fatos que antecederam o crime, as lembranças se embaralham, perde a nitidez e a ambiguidade toma conta da narrativa.
O que o leitor acompanha é a reconstrução fragmentada do passado de Lúcio, amigo íntimo de Ricardo e sua esposa, Marta, uma mulher misteriosa, que às vezes, não parece ter existência própria.A convivência entre eles faz nascer em Lúcio, um grande desejo por Marta.Tornam se amantes.
Passado algum tempo, ele descobre que não é seu único amante. Cego pelo ciúmes, começa sentir ódio de Ricardo, por desconfiar que Ricardo sabe de tudo, inclusive de sua traição com a esposa.
Rompe com o amigo e quando se reencontram, Ricardo lhe confirma a desconfiança e explica que, só possuindo fisicamente o objeto de sua amizade, podia senti-la verdadeiramente. Mas como possuir seus amigos? Por intermédio de sua mulher.
Alucinado, Ricardo quer provar à Lúcio, que o valoriza acima de tudo e de todos. Arrasta-o até sua casa, entra nos aposentos de Marta. Marta está apoiada na janela lendo um romance, e na mesma posição fica, como se nada estivesse acontecendo. Ricardo saca um revolver e atira em Marta, mas aos pés de Lúcio o corpo que cai é de Ricardo, e não o de Marta. Marta desaparece como que por encanto.
Então, ocorre o fantástico.
Quem é o assassino? Quem é a vítima? Marta era real, ou era apenas uma projeção da atração sexual que Ricardo e Lúcio sentiam um pelo outro e da atração que Ricardo sentia pelos outros amigos, de quem Lúcio tinha ciúmes doentios?
No julgamento ninguém se esforçou à acreditar em Lúcio, nem ele mesmo fez com que se acreditassem. Era verdadeira, mas inverossímil. E os dez anos de cadeia, serviram como refúgio, uma espécie de repouso pra sua alma atormentada.
O que lemos, portanto, e o relato de um mistério. Só e distante dos homens, agora Lúcio está à espera do fim.
Seria Lúcio o próprio Mário, e sendo assim, seria uma biografia escrita por Mário, descrevendo como seria seu futuro, se houvesse um?

"...acho me tranquilo - sem desejos, sem esperanças.
Não me preocupa o futuro.
O meu passado ao revê-lo, surge como o passado de outro.
Permaneci, mas não me sou.
E, até à morte real, só me resta contemplar as horas a esgueirar-se em minha face... A morte real - apenas um sono mais denso...".
* Trecho final do livro " A Confissão de Lúcio, 1913; por Mário de Sá Carneiro "

Mário de Sá Carneiro ( Portugal, 1890-1916 ).

Baltazar e Blimunda


Baltazar e Blimunda ( José SARAMAGO )

Criados por Saramago, Baltazar e Blimunda formam o casal protagonista da obra " Memorial do Convento".

No livro, o autor narra a história, do Rei João V que após várias tentativas em vão de ter um filho homem, aceita a proposta feita por Frei Antônio, que se construisse um convento em Mafra, a Força Divina lhe concederia um sucessor.

O padre Bartolomeu, conhecido como " O Voador ", nem tão fiel a Santa Igreja, tem um projeto de construir uma passarola ( objeto voador ). Projeto este, o qual a Igreja e o Poder Real não devem saber, por ser considerada heresia.

Baltazar, conhecido como Sete Sois, após ter seu braço mutilado durante a Guerra de Sucessão ( 1704 - 1712 ), é excluído do exército, e durante sua volta pra casa, sem dinheiro, pede esmolas pra sobreviver e junta o máximo de dinheiro para poder colocar um gancho no lugar de sua mão.
Ao chegar em Mafra, está acontecendo o Auto de Fé, onde será queimada a mãe de Blimunda, por ser considerada, bruxa.
O casal neste momento ainda não se conhece, e a mãe de Blimunda, que tem o dom da visão, em suas últimas palavras diz que o homem que está ao lado de sua filha, será seu grande companheiro. Blimunda não pode demonstrar ser filha da "bruxa", então se cala.
Terminada a cerimônia, Blimunda olha para o lado e pergunta pelo nome do rapaz, e em silêncio seguem para casa de Blimunda. Ao chegar em casa, Blimunda entra e deixa a porta aberta pra que Baltazar entre; sem trocar nenhuma palavra.
Após o jantar ( em silêncio ), Baltazar diz ir embora e Blimunda pede para ele ficar.


«(…) Fica, enquanto não fores, será sempre tempo de partires, Por que queres tu que eu fique, Porque é preciso, Não é razão que me convença, Se não quiseres ficar, vai-te embora, não te posso obrigar, Não tenho forças que me levem daqui, deitaste-me um encanto, Não deitei tal, não disse uma palavra, não te toquei, Olhaste-me por dentro, Juro que nunca te olharei por dentro,
Juras que não o farás e já o fizeste, Não sabes de que estás a falar, não te olhei por dentro, Se eu ficar, onde durmo, Comigo.

Deitaram-se. Blimunda era virgem. Que idade tens, perguntou Baltazar, e Blimunda respondeu, Dezanove anos, mas já então se tornara muito mais velha. Correu algum sangue sobre a esteira. Com as pontas dos dedos médio e indicador humedecidos nele, Blimunda persignou-se e fez uma cruz no peito de Baltazar, sobre o coração. Estavam ambos nus. Numa rua perto ouviram vozes de desafio, bater de espadas, correrias. depois o silêncio. Não correu mais sangue.
Quando, de manhã, Baltazar acordou, viu Blimunda deitada ao seu lado, a comer pão, de olhos fechados. só os abriu, cinzentos àquela hora, depois de ter acabado de comer, e disse, Nunca te olharei por dentro(...)»



Blimunda tem o dom da visão, mas este só lhe acontece em jejum.
Baltazar e Blimunda são cúmplices na construção da passarola, uma vez que esta é em segredo à todos, Igreja e o Poder Real; ele pela habilidade com o gancho inserido no lugar da mão, e Blimunda por enxergar o que os outros não veêm.

O casal representa a classe oprimida, que fora obrigada, à força de armas, a abandonar suas casas para cumprir a promessa do Rei...

*Obs: A substituição de pontuações por vírgulas, é característica da narrativa de José Saramago.

José Saramago in Memorial do Convento, p.56; Editorial Caminho, 15ª edição, Lisboa 1985

Charles Baudelaire


Charles Baudelaire

Charles-Pierre Baudelere (1821 - 1867 ) Paris - França.
É considerado um dos precursores do Simbolismo.
Em 1857 é lançado o livro "Les fleurs du mal" , contendo 100 poemas, deste livro é retirado o poema abaixo, chamado " Une Charogne "; O livro é acusado no mesmo ano e os exemplares do livro são presos pelo Poder Público, por ofender a moral pública.
Essa censura coube apenas à 6 poemas, Baudelaire escreve outros 6 e o livro é reeditado.




Uma Carniça - Baudelaire

Lembra-te, meu amor, do objeto que encontramos
Numa bela manhã radiante:
Na curva de um atalho, entre calhaus e ramos,
Uma carniça repugnante.

As pernas para cima, qual mulher lasciva,
A transpirar miasmas e humores,
Eis que as abria desleixada e repulsiva,
O ventre prenhe de livores.

Ardia o sol naquela pútrida torpeza,
Como a cozê-la em rubra pira
E para ao cêntuplo volver à Natureza
Tudo o que ali ela reunira.

E o céu olhava do alto a esplêndida carcaça
Como uma flor a se entreabrir.
O fedor era tal que sobre a relva escassa
Chegaste quase a sucumbir.

Zumbiam moscas sobre o ventre e, em alvoroço,
Dali saíam negros bandos
De larvas, a escorrer como um líquido grosso
Por entre esses trapos nefandos.

E tudo isso ia e vinha, ao modo de uma vaga,
Ou esguichava a borbulhar,
Como se o corpo, a estremecer de forma vaga,
Vivesse a se multiplicar.

E esse mundo emitia uma bulha esquisita,
Como vento ou água corrente,
Ou grãos que em rítmica cadência alguém agita
E à joeira deita novamente.

As formas fluíam como um sonho além da vista,
Um frouxo esboço em agonia,
Sobre a tela esquecida, e que conclui o artista
Apenas de memória um dia.

Por trás das rochas irrequieta, uma cadela
Em nós fixava o olho zangado,
Aguardando o momento de reaver àquela
Náusea carniça o seu bocado.

— Pois hás de ser como essa infâmia apodrecida,
Essa medonha corrupção,
Estrela de meus olhos, sol de minha vida,
Tu, meu anjo e minha paixão!

Sim! tal serás um dia, ó deusa da beleza,
Após a benção derradeira,
Quando, sob a erva e as florações da natureza,
Tornares afinal à poeira.

Então, querida, dize à carne que se arruína,
Ao verme que te beija o rosto,
Que eu preservei a forma e a substância divina
De meu amor já decomposto!

Carlos Drummond de Andrade


Poema sobre uma noite de amor
Carlos Drummond de Andrade

Satânico é meu pensamento a teu respeito, e ardente é o meu desejo de apertar-te em minha mão, numa sede de vingança incontestável pelo que me fizeste ontem. A noite era quente e calma, e eu estava em minha cama, quando, sorrateiramente, te aproximaste. Encostaste o teu corpo sem roupa no meu corpo nu, sem o mínimo pudor! Percebendo minha aparente indiferença,aconchegaste-te a mim e mordeste-me sem escrúpulos.
Até nos mais íntimos lugares. Eu adormeci.
Hoje quando acordei, procurei-te numa ânsia ardente, mas em vão.
Deixaste em meu corpo e no lençol provas irrefutáveis do que entre nós ocorreu durante a noite.
Esta noite recolho-me mais cedo, para na mesma cama, te esperar. Quando chegares, quero te agarrar com avidez e força. Quero te apertar com todas as forças de minhas mãos. Só descansarei quando vir sair o sangue quente do seu corpo.
Só assim, livrar-me-ei de ti, pernilongo Filho da Puta!!!!

Porque bela se coxa? Porque coxa se bela? Machado de Assis



Porque bela, se coxa? Porque coxa, se bela?

"Ao verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver dedico como saudosa lembrança estas memórias póstumas".
Machado de Assis, em Memórias póstumas de Brás Cubas.

Abaixo uma frase que me veio à mente.
Do livro, Memórias Póstumas de Brás Cubas.

Porque bela, se coxa, porque coxa, se bela?

A imagem desta frase, revela toda canalhice de Brás Cubas, que se aproxima de Eugênia, sentindo se atraído pela sua beleza, mas recua ao perceber que a bela é coxa, manca.

"Saímos à varanda, dali à chácara, e foi então que notei uma circunstância. Eugênia coxeava um pouco, tão pouco, que eu cheguei a perguntar-lhe se machucara o pé. A mãe calou-se; a filha respondeu sem titubear:
- Não, senhor, sou coxa de nascença.
(...)
Porque bela, se coxa, porque coxa, se bela?"

Percebe nesta frase, a imagem da mulher caminhando em falso, ainda num rebolado sinuoso: "Porque bela, se coxa? Porque coxa, se bela?".

O uso de aliterações, que são repetições de sons consonantais idênticos ou semelhantes, principalmente em sílabas tônicas.

Mais uma vez, Machado.
Bravo!!!!