Seja bem vindo!!!
-Entre,
-Tire os sapatos,
-Sente-se e fique à vontade.
-vou pôr uma música.
-Aceita um café?
- Gosta de livros?
- escolha um e vá folheando,
-volto já, com o café.
Alexandre Pedro
e-mail: alexandre.eells@gmail.com

Pesquisar no Cárcere do Ser

domingo, 3 de outubro de 2010

Mário de Sá Carneiro - A Confissão de Lúcio



Mário de Sá Carneiro

Dispersão, Mário de Sá Carneiro.

Perdi-me dentro de mim
Porque eu era labirinto,
E hoje, quando me sinto,
É com saudades de mim.

Passei pela minha vida
Um astro doido a sonhar.
Na ânsia de ultrapassar,
Nem dei pela minha vida...

Para mim é sempre ontem,
Não tenho amanhã nem hoje:
O tempo que aos outros foge
Cai sobre mim feito ontem.

(O Domingo de Paris
Lembra-me o desaparecido
Que sentia comovido
Os Domingos de Paris:

Porque um domingo é família,
É bem-estar, é singeleza,
E os que olham a beleza
Não têm bem-estar nem família).

O pobre moço das ânsias...
tu, sim, tu eras alguém!
E foi por isso também
Que te abismaste nas ânsias.

A grande ave dourada
Bateu asas para os céus,
Mas fechou-as saciada
Ao ver que ganhava os céus.

Como se chora um amante,
Assim me choro a mim mesmo:
Eu fui amante inconstante
Que se traiu a si mesmo.

Não sinto o espaço que encerro
Nem as linhas que projeto:
Se me olho a um espelho, erro —
Não me acho no que projeto.

Regresso dentro de mim
Mas nada me fala, nada!
Tenho a alma amortalhada,
Sequinha, dentro de mim.

Não perdi a minha alma,
Fiquei com ela, perdida.
Assim eu choro, da vida,
A morte da minha alma.

Saudosamente recordo
Uma gentil companheira
Que na minha vida inteira
Eu nunca vi... Mas recordo

A sua boca doirada
E o seu corpo esmaecido,
Em um hálito perdido
Que vem na tarde doirada.

(As minhas grandes saudades
São do que nunca enlacei.
Ai, como eu tenho saudades
Dos sonhos que não sonhei!...

E sinto que a minha morte —
Minha dispersão total —
Existe lá longe, ao norte,
Numa grande capital.

Vejo o meu último dia
Pintado em rolos de fumo,
E todo azul-de-agonia
Em sombra e além me sumo.

Ternura feita saudade,
Eu beijo as minhas mãos brancas...
Sou amor e piedade
Em face dessas mãos brancas...

Tristes mãos longas e lindas
Que eram feitas Pra se dar
Ninguém mas quis apertar
Tristes mãos longas e lindas

Eu tenho pena de mim,
Pobre menino ideal...
Que me faltou afinal?
Um elo? Um rastro?... Ai de mim!...

Desceu-me na alma o crepúsculo;
Eu fui alguém que passou.
Serei, mas já não me sou;
Não vivo, durmo o crepúsculo.

Álcool dum sono outonal
Me penetrou vagamente
A difundir-me dormente
Em urna bruma outonal.

Perdi a morte e a vida,
E, louco, não enlouqueço...
A hora foge vivida,
Eu sigo-a, mas permaneço,...
..................................
Castelos desmantelados,
Leões alados sem juba.

Leitura recomendada: "A Confissão de Lúcio".

Breve Resenha sobre a obra " confissão de Lúcio "
Narrado em primeira pessoa, a história de Lúcio é a história de um crime e de uma confissão. Depois de dez anos de prisão, onde cumprira pena por ter assassinado o poeta Ricardo Loureiro, Lúcio é solto e começa a contar sua história para, segundo ele, demonstrar sua inocência. À medida que relata os fatos que antecederam o crime, as lembranças se embaralham, perde a nitidez e a ambiguidade toma conta da narrativa.
O que o leitor acompanha é a reconstrução fragmentada do passado de Lúcio, amigo íntimo de Ricardo e sua esposa, Marta, uma mulher misteriosa, que às vezes, não parece ter existência própria.A convivência entre eles faz nascer em Lúcio, um grande desejo por Marta.Tornam se amantes.
Passado algum tempo, ele descobre que não é seu único amante. Cego pelo ciúmes, começa sentir ódio de Ricardo, por desconfiar que Ricardo sabe de tudo, inclusive de sua traição com a esposa.
Rompe com o amigo e quando se reencontram, Ricardo lhe confirma a desconfiança e explica que, só possuindo fisicamente o objeto de sua amizade, podia senti-la verdadeiramente. Mas como possuir seus amigos? Por intermédio de sua mulher.
Alucinado, Ricardo quer provar à Lúcio, que o valoriza acima de tudo e de todos. Arrasta-o até sua casa, entra nos aposentos de Marta. Marta está apoiada na janela lendo um romance, e na mesma posição fica, como se nada estivesse acontecendo. Ricardo saca um revolver e atira em Marta, mas aos pés de Lúcio o corpo que cai é de Ricardo, e não o de Marta. Marta desaparece como que por encanto.
Então, ocorre o fantástico.
Quem é o assassino? Quem é a vítima? Marta era real, ou era apenas uma projeção da atração sexual que Ricardo e Lúcio sentiam um pelo outro e da atração que Ricardo sentia pelos outros amigos, de quem Lúcio tinha ciúmes doentios?
No julgamento ninguém se esforçou à acreditar em Lúcio, nem ele mesmo fez com que se acreditassem. Era verdadeira, mas inverossímil. E os dez anos de cadeia, serviram como refúgio, uma espécie de repouso pra sua alma atormentada.
O que lemos, portanto, e o relato de um mistério. Só e distante dos homens, agora Lúcio está à espera do fim.
Seria Lúcio o próprio Mário, e sendo assim, seria uma biografia escrita por Mário, descrevendo como seria seu futuro, se houvesse um?

"...acho me tranquilo - sem desejos, sem esperanças.
Não me preocupa o futuro.
O meu passado ao revê-lo, surge como o passado de outro.
Permaneci, mas não me sou.
E, até à morte real, só me resta contemplar as horas a esgueirar-se em minha face... A morte real - apenas um sono mais denso...".
* Trecho final do livro " A Confissão de Lúcio, 1913; por Mário de Sá Carneiro "

Mário de Sá Carneiro ( Portugal, 1890-1916 ).

Nenhum comentário:

Postar um comentário