
Um lápso e algumas palavras
O relógio havia parado.
Percebi o som do seu último tiquetaquear, ainda em falso, suspenso no ar.
Então, o silêncio tornou-se ensurdecedor.
Das janelas, via-se a cidade invertida. Era como se crustáceos olhassem em espelhos
de areia.
Eis que sinto, na garganta, pegadas de algum inseto repugnante a mordiscar, com
sabor, minha jugular.
Hemorrágicamente começo a nadar no tapete do quarto, e percebo lesmas embaixo da cama. Aquele amontoado de línguas a se mover numa suruba lânguida e libidinosa. Sinto-me
atraído como se fossem sereias lascivas.
Tento fugir, procuro por aquilo de que sempre fugi, a Bíblia.
Esta se desfaz em minhas mãos como lembranças de uma primavera distante.
Me arrasto ao telefone pra pedir socorro, e nas minhas mãos tenho cartilagens de
orelhas que emitem sons de ondas quebrando na encosta.
Corro até a janela, e de dentro vejo valagumes orientando um sol apagado, perdido na
órbita.
Meus olhos lacrimejam um sorriso sem dentes.
Um vento traz uma placa letrada de motel e pendura-a no cume da igreja.
Um padre cacareja palavras demoníacas.
Um certo alívio me conforta, e me derruba ao chão, do trigésimo terceiro andar.
Meu crânio estilhaça no chão frio de mármore e meu cérebro emite suas últimas
cenas, como num espetáculo final, com suruba de línguas-lesmas numa catedral derretida pelo deus sol.
A brasa do cigarro queima-me o dedo, e em susto, derrubo a xícara de café que mancha
minhas palavras sagradas.
Das páginas de meus rabiscos, um padre letrado persigna os fieis sobre um pênis avolumado.
Então, o relógio volta a tiquetaquear.
Alexandre Pedro
26/12/2011