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Alexandre Pedro
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sexta-feira, 8 de outubro de 2010

Júlio Cortázar - Continuidade dos Parques


Júlio Cortazar, um escritor Argentino, formado em letras em 1935, lecionou na Faculdade de Filosofia e Letras da Universidade Nacional de Cuyo", mas renunciou ao cargo, quando Juan Domingo Péron assumiu a Presidência.
O escritor anti-ditadura, muda se para París e passa trabalhar como tradutor da Unsesco.

Júlio, foi convidado a traduzir a obra completa de Edgar Allan Poe, pela Universidade de Porto Rico, trabalho este considerado pela crítica, como a melhor tradução da obra do escritor.

Júlio escrevia de forma a exigir do leitor uma participação ativa na leitura/narrativa.

Após a morte de sua segunda esposa, Carol, em 1982,Júlio entra em profunda depressão e morre aos 70 anos, de leucemia. Seu corpo é enterrado junto ao de Carol, em París.

Júlio Cortázar ( 1914 - 1984 )


Continuidade dos Parques


Havia começado a ler o romance uns dias antes. Abandonou-o por negócios urgentes, voltou a abri-lo quando regressava de trem à chácara; deixava interessar-se lentamente pela trama, pelo desenho dos personagens. Essa tarde, depois de escrever uma carta ao caseiro e discutir com o mordomo uma questão de uns arrendamentos, voltou ao livro com a tranqüilidade do gabinete que dava para o parque dos carvalhos. Esticado na poltrona favorita, de costas para a porta que o teria incomodado com uma irritante possibilidade de intrusões, deixou que sua mão esquerda acariciasse uma e outra vez o veludo verde, e começou a ler os últimos capítulos. Sua memória retinha sem esforço os nomes e as imagens dos protagonistas; a ilusão romanesca ganhou-o quase imediatamente. Gozava do prazer quase perverso de ir descolando-se linha a linha daquilo que o rodeava, e de sentir ao mesmo tempo que sua cabeça descansava comodamente no veludo do alto encosto, que os cigarros continuavam ao alcance da mão, que mais além das janelas dançava o ar do entardecer sob os carvalhos. Palavra a palavra, absorvido pela sórdida disjuntiva dos heróis, deixando-se ir até as imagens que se combinavam e adquiriam cor e movimento, foi testemunha do último encontro na cabana da colina.

Antes entrava a mulher, receosa; agora chegava o amante, com a cara machucada pela chicotada de um galho. Admiravelmente ela fazia estalar o sangue com seus beijos, mas ele recusava as carícias, não tinha vindo para repetir as cerimônias de uma paixão secreta, protegida por um mundo de folhas secas e caminhos furtivos. O punhal se amornava contra seu peito e por baixo gritava a liberdade refugiada. Um diálogo desejante corria pelas páginas como riacho de serpentes e sentia-se que tudo estava decidido desde sempre. Até essas carícias que enredavam o corpo do amante como que querendo retê-lo e dissuadi-lo desenhavam abominavelmente a figura de outro corpo que era necessário destruir. Nada havia sido esquecido: álibis, acasos, possíveis erros. A partir dessa hora cada instante tinha seu emprego minuciosamente atribuído. O duplo repasse, sem dó nem piedade, interrompia-se apenas para que uma mão acariciasse uma bochecha. Começava a anoitecer.

Já sem se olharem, atados rigidamente à tarefa que os esperava, separaram-se na porta da cabana. Ela devia continuar pelo caminho que ia ao norte. Do caminho oposto, ele virou um instante para vê-la correr com o cabelo solto. Correu, por sua vez, apoiando-se nas árvores e nas cercas, até distinguir na bruma do crepúsculo a alameda que levava à casa. Os cachorros não deviam latir e não latiram. O mordomo não estaria a essa hora, e não estava. Subiu os três degraus da varanda e entrou. Do sangue galopando nos seus ouvidos chegavam-lhe as palavras da mulher: primeiro uma sala azul, depois um longo corredor, uma escada acarpetada. No alto, duas portas. Ninguém no primeiro quarto, ninguém no segundo. A porta do salão, e depois o punhal na mão, a luz das janelas, o alto encosto de uma poltrona de veludo verde, a cabeça do homem na poltrona lendo um romance.
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Neste conto Júlio começa narrando a perspectiva de um personagem (O Leitor) que narra a história de um romance infiel, em que o casal traça um plano para assassinar o marido, e eis que o personagem "amante", percorre o caminho descrito pela mulher "amante/esposa", e se depara com a cena inicial, onde o personagem que lê e narra a história ao leitor, é o próprio marido. E que está sentado na poltrona verde aveludada, lendo o romance à nós-leitores. Ou seja, o personagem se torna real; sai de dentro do livro para assasinar o Leitor-marido.
Por Alexandre Pedro.

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